sexta-feira, 3 de junho de 2011

Rodrigo Grota no Facebook.

nessa época eu era assistente de um pintor. ele já estava cego mas continuava a fazer retratos. todas as manhãs nos levantávamos, eu preparava o chá, arrumava o toca discos e ouvíamos wagner. ele dizia que wagner queria explodir o mundo e que hoje ninguém mais quer explodir o mundo. ouvíamos tristão e isolda religiosamente antes de iniciar os trabalhos.

as pessoas chegavam ao ateliê e conversavam com o mestre. ele não precisava ver o rosto, não precisava tocar a sua face – ele se guiava apenas pela voz. seus retratos não eram figurativos – havia a cor, o contorno, a expressão. as pessoas se surpreendiam – ele destacava aquilo que elas só ousavam ler em voz baixa.

um dia você se aproximou – começo de outono, acho que tinha acabado de acordar. não havia ninguém no ateliê ainda – você disse apenas uma palavra: “perto”. o mestre pediu a minha atenção e de uma forma muito cortês explicou que precisava sair. e antes de um tímido sorriso deixou claro que esse seria o meu primeiro retrato. “aquilo que você vê não é o mais importante. ela quer justamente o que você desconhece”.

inicialmente não pude olhar para o seu rosto. eu observava tudo de uma forma geral, sem me prender a nenhum detalhe. vi a sua bolsa sobre a cadeira – um jornal enrolado saindo pelo lado de cima. um maço quase vazio, um isqueiro. procurei por uma blusa – você sentia a janela semi-aberta.

devido aos seus pequenos gestos, pensei que o primeiro passo seria se fixar no movimento. o seu ritmo era interno – tudo estava em harmonia. ao acender um cigarro, você demonstrava sua fragilidade. quando evitava o meu olhar, eu percebia a sua força. havia o desvio, a luz suave e o silêncio. você nunca disse nada, não pediu algo para beber, nem perguntou porque aquele livro do iberê camargo estava ali semi-aberto sobre a minha mesa. não duvidou do tom azul, do quase rascunho, nem se incomodou com o fato de que eu estava a pintá-la de costas. eu não queria mais ver o seu rosto, não queria sentir aquilo que está presente – você chegava em mim por meio de uma série de ausências, evocações, vestígios. eu só poderia ficar de costas.

eu sentia em cada traço que sua imobilidade era apenas um desejo meu. por mais que eu desenhasse o fluxo, expressasse uma certa instabilidade, as cores sempre me seduziam, eu a idealizava de uma forma irresistível.

recuei e voltei a observá-la de frente. você me encarava como se ainda não tivesse despertado. eu me aproximei da sua bolsa e encontrei um último cigarro. ficamos a observar o quadro – estava incompleto, as cores ainda não haviam se fixado – mas você estava ali. você estava naquele pequeno movimento interno, naquela voz invisível, naquelas linhas que evocavam o desvio.

você se aproximou, e no seu rosto havia uma incerteza. ali estava a dor, a impermanência, uma fragilidade que não te deixava mais suave. você disse: “your eyes... like a dylan song”.

eu saberia que você nunca mais estaria próxima.
eu saberia que a partir daquele momento o encantamento...
(o outono era apenas suave)

seu retrato permaneceu inacabado na minha mesa.
ao lado do livro do iberê, das fotos do bacon e de um estudo de hopper.
o mestre voltou ao ateliê minutos depois e apenas me perguntou do wagner.
eu achava que explodir o mundo me libertaria.

o seu rosto, apenas.

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